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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Ataques ineptos e desonestos a Bertrand Russell



O nosso amigo Luciano, conhecido por alguns embates no site orkut, tentou criticar, trecho por trecho, o que Russell disse sobre sua posição teológica e metafísica acerca da existência de Deus em uma entrevista. Prima facie, vê-se a desonestidade intelectual de Luciano em três quesitos: 1) Selecionou ou “picotou” trechos de períodos completos, tornado-os isolados do contexto para depois comentá-los individualmente; 2) Ignorou a forma do discurso de Russell, realizado em uma entrevista não direcionada à especialistas de lógica formal, metafísica e teologia, mas sim para o público em geral. 3) Luciano demonstrou, claramente, desconhecer a trajetória intelectual de Russell. Demonstremos as três desonestidades intelectuais de Luciano.


Desonestidade 1:

Ao ver a entrevista, a primeira pergunta é esta: “Por que você não é um cristão?”  Russell responde:

“Porque eu não vejo nenhuma evidência para os dogmas cristãos. Eu examinei todos os argumentos disponíveis em favor da existência de Deus e nenhum deles me parece ser logicamente válido.”

Esta é a resposta de Russell: uma resposta inteira a uma pergunta. Eis o que Luciano nos apresenta:

0:19 –         Russell responde que “não vê” nenhuma evidência para os dogmas cristãos. Evidentemente é uma falácia da incredulidade pessoal. Obviamente, a pergunta foi “Por que você não é cristão?”, portanto há um atenuante para Russell. Nos próximos pontos, não há atenuante algum.”

0:22 -                        Ele disse que “examinou todos os argumentos disponíveis” para a existência de Deus, o que é evidência anedota. Ele conclui dizendo que “nenhum deles” parece ser logicamente válido para ele. Aqui, a falta de especificação é suficiente para comprometer seu discurso.



Luciano, portanto, “corta” os trechos de uma resposta completa para dar a entender que Russell comete alguma falácia. Quem na verdade comete falácia é Luciano: não existe meio mais descarado de deturpar um discurso do que um sofisma de tal espécie. Comento:

a)     Russell disse que não vê evidência favorável para a conclusão “Deus existe” PORQUE (razão) examinou todos os argumentos que estudou metafísicos a favor da existência de Deus em sua vida e não concordou com nenhum desses argumentos. Se, por exemplo, considerássemos isolado o período “Não vejo evidência...”, sem uma boa razão, então poderíamos considerar um sinal de incredulidade. Mas Luciano deliberamente distorce o discurso isolando as orações.

Primeira conclusão: Russell não cometeu falácia de incredulidade, pois demonstrou a razão pela qual não crê em Deus, e, como demonstrarei, essa razão é justificada e em nenhum momento “anedótica”.  Isso recai no que eu identifiquei em 3: Luciano só tem o direito de considerar a razão de Russell como anedótica somente na medida em que desconhece sua trajetória intelectual.  Agora, vejamos o que isso significa.

                Desonestidade 2:

                Luciano alegou:

Ele disse que “examinou todos os argumentos disponíveis” para a existência de Deus, o que é evidência anedota. Ele conclui dizendo que “nenhum deles” parece ser logicamente válido para ele. Aqui, a falta de especificação é suficiente para comprometer seu discurso.



Em um só discurso, Luciano comete três atrocidades: 2, que eu defini como “ignorar a forma do discurso de Russell, realizado em uma entrevista não direcionada  a especialistas de lógica formal, metafísica e teologia, mas sim para o público em geral”. Luciano parece querer, como dá a entender, que Russell dissesse algo como nesta entrevista informal a um público geral:

                “Eu analisei o argumento ontológico de Santo Anselmo, retomado por Descartes e Leibniz e Hegel, rejeitado por Santo Tomás de Aquino e Kant. Este argumento, pelas razões x e y, não posso aceitá-lo. Eu analisei o argumento cosmológico, da forma como expressa nas Cinco Vias de Santo Tomás, e o argumento da contingência de Leibniz: tais argumentos, pelas razões z e k, não posso aceitar. Eu analisei, também, os argumentos de cunho teleológico da tradição Patrística à Escolástica, e concluo que nenhum deles dá suporte à existência de Deus.”

                Luciano, portanto, perde o senso de ridículo ao dar a entender que Russell pelo menos especificasse de quais argumentos ele rejeitou em uma entrevista de pouco mais de 3 minutos, de modo algum uma entrevista técnica, mas informal. Eu me pergunto se tal atrocidade é falta de técnica ou pura má fé.

"Ensaios Impopulares"

                Desonestidade 3:

                Luciano lançou o palpite de que a razão que Russell apresentou, que é a de ter analisado os argumentos da forma como eram apresentados em sua época, é “evidência anedota”. Isso revela de modo indubitável o seguinte: a pura ignorância e amadorismo de Luciano na história filosófica do século XX. Para demonstrarmos tal, traçamos um breve panorama  da trajetória de Russell no século XX mediante suas críticas públicas aos argumentos metafísicos teístas. Antes disso, devemos ter ressaltadas duas coisas: a situação contemporânea do legado lógico de Russell é uma coisa, a sua contribuição à lógica matemática e formal e à filosofia nas épocas em que publicara, é outra. Façamos.

1900: Em “A Filosofia de Leibniz”, obra publicada no Brasil pela Companhia Nacional em associação com a USP, Russell já critica o argumento ontológico de Leibniz valendo-se de sua teoria das descrições. A mesma é exposta em um dos artigos posteriores mais famosos do século XX: On denoting. Russell também critica os argumentos clássicos a favor da existência de Deus expostos nos escritos de Leibniz, incluindo o argumento cosmológico, expresso de forma genial por Leibniz no que ele argumentou como “contingentia mundi”. No começo do século XX, portanto, Russell já enfrentava os argumentos clássicos dos filósofos.

1905: On denoting. Nesse tratado que influenciou tanto a filosofia da linguagem e da lógica, e de modo geral filosofia anglo-saxônica até à década de 60, através de sua teoria das descrições, Russell contribui com novo debate sobre a noção de “existência”. Refuta, quase no final do artigo da revista conceituada Mind, o argumento ontológico da forma como a encontramos em Anselmo e Descartes e Leibniz. Russell concordara com a tradição de Kant de que a existência não pode ser um predicado real, e, com sua teoria, posicionou-se a considerar sem sentido dizer que algo, se é impassível de ser descrito, existe. Até 1960, quando novas críticas como a de Peter Strawson vieram à tona, a teoria de Russell influenciou gerações quase de modo ininterrupto. Contribuiu ao debate, e hoje tem sua validade delimita de acordo com as discussões no campo da lógica e sua filosofia como no campo da epistemologia da linguagem. Muitos anos antes de Luciano sequer ter existido (e, convenhamos, quando Russell morreu, em 1970, se é que Luciano existia, é provável que usava fraudas), quase no começo do século XX, um matemático e lógico de Cambridge com excepcional talento a Whitehead Whitehead já investigava a validade do argumento ontológico. É a isso que Luciano chama de “anedótico”? Continuemos.

De 1905 a 1918, Russell já era, desde os 18 anos, um ateu. Mas só começou a expor suas opiniões sobre a crença em Deus ao público menos técnico em geral em pequenos panfletos e em palestras. Russell só veio a dar uma demonstração mais específica das razões pelas quais não é cristão em um panfleto de 1928, em “Por que não sou cristão”. Já conhecíamos suas críticas filosóficas mais técnicas. Tratava-se, evidentemente, da rejeição por Russell em grande parte da lógica aristotélica fundada numa sintaxe sujeito-predicado que Russell considerava falaciosa (vide sua teoria das descrições). Antes de 1928, Russell, porém, criticara o conceito de “substância” em 1927 em suas obras “Uma análise da matéria” e “Delineamentos da Filosofia” (título do livro da editora Companhia Nacional) sob uma nova luz em sua filosofia: algo próximo de uma filosofia dos processos, provavelmente influência de Whitehead e valendo-se da influência da nova física quântica e de partículas. Ao que Russell já rejeitara os argumentos metafísicos por razões lógicas e metafísicas específicas, defenestrou, portanto, aquilo que considerava o cerne das filosofias de Aristóteles, Descartes e Leibniz: a noção de substância. Russell já criticara em sua obra sobre Leibniz a noção de substância, mas não por esse viés. Rejeitado todo argumento metafísico que se funda na noção de “substância”, e ainda mais pelas razões lógicas expressas, não restou qualquer argumento clássico que Russell pudesse aceitar. Um novo debate metafísico sobre a existência de Deus começou na década de 70 com a retomada do argumento Kalam e de outros de índole semelhante por influência  da nova cosmologia do Big Bang por filósofos como William Lane Craig; mas Russell não estaria mais em vida para analisá-los. Continuemos, portanto.

1925 e 1928: Em “No que acredito”, Russell expressou seu ateísmo ao público não filosófico. Mas trata-se de linhas muito gerais e não atacou os argumentos centrais da metafísica cristã de forma técnica. Algo um pouco mais técnico, mas não menos para o público geral veio em 1928: seria um dos panfletos mais famosos do século XX e que tornaria o famoso Lord Bertrand Russell, já muito conhecido por herança de uma família tradicional inglesa, o incréu e ídolo ateu dos céticos e humanistas da época e posteriores. Russell trata apenas de retomar argumentos já conhecidos por “heréticos” como David Hume, o qual os expressou em forma de diálogos em “Diálogo sobre a religião natural” (publicado também pela Ed. Unesp). Trata-se da refutação do argumento de uma causa primeira, os argumentos de uma lei natural, os de índole teleológica, moral e religiosa. Se os especialistas consideram tais argumentos defensáveis hoje em dia, esta é uma outra questão.

1945: Até tal ano, Russell publicara mais de 14 livros, incluindo clássicos como “Ensaios Céticos”, sua controvérsia sobre casamento, “A conquista da felicidade”, seu pequeno tratado de história do período de 1814-1914 intitulado “Liberdade e Organização”, “Ciência e Religião”, no qual retoma algumas críticas à superstição e ao dogmatismo cristão de sua época, uma análise sobre o poder, obra interessante e vigorosa de sua filosofia, etc. Temos então uma de suas obras mais famosas: História da Filosofia Ocidental, que colocou-o numa posição considerável de historiador da filosofia e de sucesso em vendas.Numa obra como essas, não é preciso ser muito inteligente para perceber que o escritor deve conhecer todo o arcabouço metafísico ocidental, ou seja, todos os argumentos a favor e contra a existência de Deus. Russell comenta todos, seja em Platão, Aristóteles, Epicuro, Agostinho, Boécio, Anselmo, Sto. Tomás, Scot, Descartes, Leibniz, Kant e Hegel. Não é preciso mais comentários: Russell reexamina os argumentos e os comenta, demonstrando sua posição já na idade madura. Temos aqui, por conseguinte, o zênite do amadorismo, ignorância e desonestidade intelectual de Luciano: alguém que desconhece por completo o legado russelliano e suas críticas aos argumentos. Se Luciano concorda com as críticas do filósofo britânico, é questão adversa. Mas não tem o direito de julgar “anedota” algo que Russell o fez por mais de 70 anos em vida. Termino aqui o comentário sobre esta questão. Portanto: Russell não só contribuiu para o debate com novas contribuições ao campo da lógica matemática moderna, como seria uma insensatez supor (dada a ignorância da pessoa em questão) que um historiador da filosofia, um lógico e um filósofo do calibre de Bertrand Russell não conhecesse e não tenha criticado tais argumentos. Nem preciso citar o debate de 1948 com o exímio historiador e filósofo, o padre Copleston. Nele vemos algumas das posições clássicas de Russell já publicados ao longo da vida deste. Mas é claro: Luciano não sabe nada disso, e é duvidoso que queira saber. Termino por aqui, portanto, minhas considerações sobre este quesito.
Capa do excelente "Por que não sou cristão"



                0:38 – Ele afirma que NÃO PODE (friso no “Não pode”) “haver razão prática para acreditar no que não é verdade”, no caso a existência de Deus. Se ele afirma que não é verdade, então ele está certo da inexistência de Deus. Dessa forma, caberia a ele provar a inexistência (lembremos: o ônus da prova é do alegador).



A pergunta da entrevistadora tinha sido a seguinte:

Você acredita que há uma razão prática para ter uma crença religiosa para muitas pessoas?”

                Luciano comete duas atrocidades: a primeira, caso Russell tenha usado o termo “falso” para se referir às conclusões dos argumentos acerca dos quais ele se referiu na primeira pergunta, que então isso é o mesmo que dizer “Deus não existe”. Falso: Russell, como todo lógico, sabe que ausência de evidência não é evidência de ausência. Russell não afirmou em nenhum momento que “Não há Deus” na entrevista, e nas várias obras que li, ele nunca afirmou tal coisa.Pelo contrário: ele ressaltou em inúmeras obras o óbvio: ele não via qualquer meio demonstrar que o Deus cristão não existe, assim como não via como demonstrar que os deuses homéricos ou egípcios não existem. É possível, não obstante, que Russell fosse convicto da inexistência de Deus: no entanto não a expressara. Luciano, portanto, dá uma interpretação duvidosa. Concordo com Luciano que Russell não deveria ter dito isso, vide que, de fato, parte do ônus da prova passa a ser do próprio Russell, que deveria ter de demonstrar para o quê exatamente atribuiu o adjetivo “falso”.

0:46 - Ele ainda diz “se é verdade, você deve acreditar, se não é você não deve”, concluindo com “se você não pode descobrir se é verdade ou não, você deve suspender o juízo”, mas ele entra em contradição com que disse na declaração anterior, em que ele afirma que não se pode acreditar no que NÃO É verdade. Portanto, ele não suspendeu juízo algum. Notem que não é preciso menos que 1 minuto de prosa para ele se complicar.





Caso Russell tenha utilizado o termo “falso” para se referir aos argumentos acerca da existência de Deus – embora saibamos que, dum ponto de vista mais técnico, se este é o caso, deveria ter usado o termo “inválido” –, então não há qualquer contradição aqui.

 1:07 – Ele diz que é desonestidade intelectual “ter uma crença por que pensa que ela é útil e não porque pensa que é verdadeira”. Nisso eu concordo com ele. O problema é que o paradigma de Russell é completamente sustentado pelo paradigma de Epicuro, que defende que as crenças devam ser aceitas por conveniência, e não por seu valor de verdade. Russell não estava particularmente bem nesse dia ou ele era sempre ilógico assim? Aposto na segunda opção.





Aqui Luciano, mais uma vez, deturpa o pensamento russelliano. A quais crenças Luciano se refere? Luciano primeiro criticou Russell por não especificar quais argumentos ele rejeitara: agora entrou em contradição. Luciano não especificou a quais crenças Russell supostamente considera “paradigma” aceitá-las “por conveniência” ao invés de seu valor de verdade ou falsidade. Ao contrário: Russell sustentou ao longo da entrevista que uma crença ou argumento devem ser aceitas se é possível demonstrar se são verdadeiras ou falsas. Luciano provavelmente está se referindo às crenças de âmbito moral, e não filosóficas ou científicas. Deve ele ter lido o debate com Copleston, no qual Russell não parte da crença de um Deus absoluto para direcionar seu comportamento na sociedade. Se é verdade, deveria ter dito: “crenças morais”, ao invés de deturpar o que Russell deixou claro na entrevista. Pergunto, mais uma vez: é falta de técnica, Luciano?

1:26 – Quando a jornalista lhe pergunta a respeito de alguns cristãos que acham que não existiria código de conduta sem a religião, Russell diz: “Essas regras são geralmente equivocadas, e muitas vezes fazem mais mal do que bem”. Novamente, ele é falho por não ser específico em quais equívocos, embora possamos suspeitar que é basicamente a chorumela que Dawkins tentou.





Aqui Luciano comente o erro 2: quer que Russell trave um debate e considerações específicas em uma entrevista de cunho informal e rápida: pura insensatez. Se Luciano quiser conhecer as posições russellianas sobre a moral judaica-cristã e de outras religiões em que ele alegou ver malefícios, recorra às obras já supramencionadas. Um tema longo como esse não é matéria para entrevistas de televisão, caro Luciano: recorra aos livros se quiser saber algo.

1:39 – Russell prossegue dizendo que as pessoas “provavelmente conseguiriam uma moralidade racional pela qual viver, se abandonassem essas moralidade irracionais e tradicionais de tabu que vieram de eras selvagens”. Mais uma afirmação sem evidências, naturalmente, e uma teoria que é falseada com o exemplo de países que fizeram o “abandono” de tal moralidade (ex. Rússia, China).

Russell com alunos, em Princeton (EUA)





Sabemos das atrocidades mais bárbaras do século XX pelo comunismo russo e chinês. O que Russell disse aí é o seguinte: você não precisa acreditar em Deus para seguir qualquer traço de moralidade desejável. Embora seja fato elementar que os costumes que o ocidente considera defensáveis tenham vindo na quase totalidade da religião cristã ao ocidente, o código de Leis dos países ocidentais já numa era secular não depende da existência de qualquer religião: embora a quase totalidade de tais valores tenham vindo das religiões, nossas Leis podem ser fundamentadas com base na crença de indivíduos religiosos bem como de ateus. Do fato de alguém ser ateu, não se segue é imoral: um mesmo ateu pode defender os valores que herdara da tradição judaico-cristã sob à luz unicamente da razão. É claro que o abandono desses valores, hoje em grande parte seculares (não em sua origem, repito) quase que indubitavelmente faria que a humanidade caísse em pura barbárie. Russell disse algo mais profundo: nossa moralidade pode convergir com o conjunto de valores tradicionais sem que necessariamente tenhamos que crer que exista um Deus que tenha se revelado à humanidade. Abandonamos, portanto, esse conjunto de superstição antiga na qual os valores clássicos se baseavam: não precisamos desses mitos teológicos antigos. Em uma palavra: o fulcro dos valores judaico-cristãos não precisam de sua teologia, vide que podemos fundamentá-los na razão. Mas se Luciano gosta tanto de contra-exemplos, quantos exemplos de atrocidades religiosas precisaríamos apresentar que, mesmo em épocas onde vê-se que os valores religiosos eram mais abrangentes, não foram suficientes para impedir a matança de milhares de judeus nas cruzadas por cristãos, guerras em grande parte de origem religiosa entre a Inglaterra e França, a permissividade para escravizar índios e negros pela Igreja, queimar pessoas vivas e condená-las por questões de teologia? Os valores e épocas eram outros? Sim, mas qual é a evidência de que, mesmo com a ampliação dos valores religiosos, o que se considera como barbárie não poderá se repetir? Não precisamos da religião cristã para defender os valores tradicionais. Abandonar a superstição que os sustenta é uma coisa, abandonar tais valores, é outra. Russell preferiu a primeira opção ao invés da segunda.

1:58 – Que a repórter é burra demais, e quase retardada, isso muitos concordariam, pois ela diz que as pessoas “precisam ter algo externo que seja imposto sobre elas”, e sem isso não teriam tanta “força moral” quanto Russell. Ou seja, ela assume que as besteiras de Russell são válidas. O engraçado é quando ele diz: “não acho que isso seja verdade, o que é imposto externamente não tem nenhum valor, não conta”. Divertido, pois quando entramos em uma organização, existem várias regras impostas externamente a nós. Se formos viver no paradigma de Russell, simplesmente não sobreviveríamos em organização alguma. Detalhes…











É evidente que a repórter concorda com a máxima de Políbio: a religião serve como uma espécie de controle social. Não está claro qual seria essa “força imposta”: talvez seja o medo do além-túmulo, que Russell, como Lucrécio, considerava um dos elementos fundamentais da superstição e experiência religiosa. Talvez a repórter não seja tão “burra” assim: não só Políbio convergiu para a mesma conclusão, mas quantos ao longo da cultura universal o fizeram? Luciano se surpreenderia com o número de grandes pensadores que, desde tempo imemorais  concluíram que a religião encabresta, em grande parte pelo medo que impõem. Estude, Luciano, estude.

(...) O marxista assume, a princípio, que a religião é má, e depois sairá difamando-a e inventando versões espantalhos da mesma para negar tais espantalhos. Há fortes evidências de tal postura de Russell, inclusive quando ele assumiu militância esquerdista e de anti-americanismo.







A comparação não é válida, porque muito antes de Russell ter lido uma linha de Marx (ele refutou algumas posições do materialismo dialético em sua História da Filosofia), ele já tinha posições muito independentes de qualquer conclusão marxista anti-religiosa. Portanto, Luciano mente. Sobre o esquerdismo de Russell, o assunto é extenso demais, portanto não entrarei em muitos detalhes. Cabem algumas considerações: Russell encarou Lênin pessoalmente em 1921, e concluíra (leiam “Teoria e Prática do Bolchevismo”) que o sistema soviético era dogmático e inflexível, muito distante da teoria socialista que imaginara. Em quase todas as suas obras, Russell criticara com extrema voracidade a ditadura soviética, colocando-se contra os crimes e a opressão desse sistema. Sim, Russell era socialista, mas não um “esquerdista” desonesto. Posicionou-se em muitas questões ao que era consenso de seu tempo, criticou crimes de guerras americanos (dos turcos também) e defendeu o partido trabalhista britânico. Se quiser saber da extensa vida política de Russell, que durou quase um século, leia o livro do Alan Ryan: “Bertrand Russell, uma vida política.” Leia também uma compilação de cartas famosíssima, intitulada “Bertrand Russell Responde”, existe em espanhol Abundará as condenações de Russell ao comunismo, se é o que quer saber. Russell sempre foi um defensor invencível da democracia parlamentar: diferia em questões de economia política, mas era um defensor dos valores liberais clássicos na política.


2:40 – Quando perguntado sobre se o ateísmo lhe traria mais “força” (confesso que foi uma pergunta idiota da repórter), ele diz “estava apenas engajado na busca do conhecimento”, mas isso é uma declaração que serve para qualquer coisa. Qualquer um pode dizer que “buscou conhecimento”, só que isso não torna a alegação verdadeira.


Já criticado. Dizer isso sobre alguém do calibre intelectual de Russell é um ato sórdido, que beira à puriedade. Russell foi, ao longo de quase seus 100 anos de vida, um dos maiores intelectuais do século XX. Na verdade, um polímata: matemático, lógico, exímio escritor (Nobel de Literatura em 1950) ensaísta, moralista (estudara ciência morais em Cambridge), historiador e comentador político. Só por curiosidade: quem é Luciano?

Conclusão:

Embora Luciano sensatamente tenha lançado suas “críticas” ao extremismo de quem bajula os neo-ateus (Sir Richard Dawkins, etc.), que em matéria de religião sabem muito pouco – vide as críticas de Alister Mcgrath, Craig e outrem –, quase nada do que disse tem validade, como demonstrado. Embora seja verdade que grande parte das críticas de Dawkins venha do filósofo inglês, Russell teria discordado, quase com certeza, desse movimento de neo-ateísmo. Russell discordaria de palpiteiros, tanto dos críticos incautos da religião quanto dos críticos que se colocam a criticá-lo sem ao menos conhecerem o elementar de sua produção intelectual e sem ter o mínimo exigido de bom senso. O intento de Luciano, evidentemente claro, foi denegrir a imagem do grande intelectual inglês a todo custo. “Picotou” excertos da entrevista, mentiu, desconheceu a produção deste e deu outras interpretações que não a que se extrairia da entrevista. Pode ser fácil criticar alguns fãs de neo-ateus, mas para criticar alguém à altura de Bertrand Russell, é preciso mais do que um conjunto de sofismas desconexos e amadores. Você quer enfrentar o legado russelliano em qual frente, Luciano? O do Russell dos Principhia Mathematica, a maior contribuição às lógicas no século XX? O do Russell filósofo e historiador da filosofia? O do Russell ensaísta e crítico das superstições populares? O do Russell escritor, ganhador do Nobel em 1950? Vai precisar sair da crítica de entrevista de televisão e recorrer a assuntos mais técnicos nos quais, evidentemente, sua competência é duvidosa. Pode começar pela “The Bertrand Russell Society”. Publicações mais técnicas você poderá encontrar aí. Mas claro, poderá recorrer às teses de mestrado e doutorado que, em temas de filosofia analítica no Brasil, só têm aumentado.
Russell jogando xadrez com sua terceira esposa, Patrícia







4 comentários:

boboniboni disse...

Você merece um prêmio por responder um retardado mental que faz recortes insanos e estabelece sofismas com intuito de propaganda desonesta. merece um prêmio mesmo, haja paciência.

Jeanioz disse...

Esse negócio de comentar trecho por trecho é uma merda: demora um tempão para fazer e o resultado é uma concha de retalhos que não explica nada. :/

André disse...

Muito bom o texto. Parabéns pelo trabalho de consulta e pela paciência em geral.

Ano passado fiquei muito tempo dando audiência pra esse povo. http://neoateismodelirio.wordpress.com/2009/10/05/o-saganismo-como-seita-e-nao-uma-religiao/#comments

Mas já não faço mais isso... cansei.

Anônimo disse...

não sei porque não me espanto com isso. Nietzsche teve seus escritos sabotados pela própria irmã, imagine uma simples entrevista para quem quiser assistir -- e, raramente, tentar compreender as ideias do entrevistado.
realmente, um puta post, Aurelio.