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sábado, 12 de junho de 2010

Da leitura e compreensão bíblicas



Qualquer apedeuta hoje usa termos em seu cotidiano como “DVD”, “Pendrive”, “física quântica”, etc., mas quase ninguém dos que os emprega tem a bagagem científica (físico-matemática) necessária para compreender o que subjaz por trás de tais tecnologias e disciplinas. Quase toda a populaça também fala de “proteína”, “aminoácidos”, “genomas” e “células”. Fala-se de “ética” e “razão”: quem é o filósofo para saber o que tais conceitos significam? Todo mundo também fala de Bíblia. O problema reside aí: é fácil para o incauto perceber que deve estudar mais ao adentrar em temas quando este percebe a complexidade dos mesmos. Mas quando o assunto é Bíblia, diz-se: “leia”. Como assim? Para se compreender mecanismos básicos do funcionamento de uma proteína eu devo estudar bioquímica. Entrementes, para se ler a Bíblia eu só preciso... lê-la? Trata-se uma ignorância arraigada em larga escala, fruto da banalização e má compreensão geral das áreas do conhecimento que envolvem o livro sagrado. Tentarei expor alguns dos horizontes e requisitos necessários para se ler um livro como a Bíblia.


Que é a Bíblia, em suma? Podemos dizer, grosso modo, que o Antigo Testamento é a narração dos eventos e tradições que envolvem a vida do povo judeu, tal como o interpretaram em seus diversos contatos com relação a outros povos. O mínimo reconhecimento disso já nos faz recorrer à história do povo hebreu. Quais compêndios utilizar? Quais periódicos acompanhar? Quais os problemas de tradução envolvidos? É matéria para especialista em história, exegese bíblica e hermenêutica (interpretação literária à luz de material historiográfico). Quando eu estudava história judaica, recorri à “História dos Judeus”, do historiador inglês Paul Johnson. Para um aprofundamento em história judaica antiga, é evidente que uma leitura de Flavio Josefo é mais que necessária. São dois livros densos, somados em mais de 2.000 páginas. Usei também, para fins mais didáticos, “Bíblia: Uma Biografia”, da historiadora e especialista em religiões, Karen Armstrong, bem como da mesma autora “Uma História de Deus”. Lembro-me também de Robin Lane Fox, em “Bíblia, Verdade e Ficção”. Estas obras são apenas algumas das quais me vali, inicialmente, e que me alertaram inicialmente à vastidão literária, histórica, sociológica, política, hermenêutica e social das dimensões em que estão mergulhados os temas bíblicos. Recomendo-os para um primeiro contato.


Não compreende a Bíblia aquele que a lê sem vislumbrar seu horizonte histórico, porque a mesma não é um livro de história, mas um livro com histórias, de que somente o historiador poderia verificar o conteúdo factual e as diversas interpretações a que se pode incidir em sua leitura. Ultrapassa o limite da ignorância, portanto, aquele que recomenda sua leitura sem o substrato historiográfico. Seria como andar em um território sem um mapa em mãos. Não se compreende o mito da criação sem um estudo da religião mesopotâmica. Tampouco se compreende o Êxodo sem o estudo cuidadoso da literatura egípcia. Não se faz idéia da origem dos costumes judaicos sem o estudo antropológico da cultura dos povos circunvizinhos com os quais os hebreus tiveram contato. Quem compreenderá as profecias bíblicas sem aprofundar-se no sofrimento do povo judeu mediante as conquistas estrangeiras e as várias divisões do reino de Israel? Que se dirá dos elementos apocalípticos do século IV AEC, dos livros de Daniel e do contato com o zoroastrismo? Nem ao menos entrei da temática cristã. Creio que isso seria suficiente para expor o estado deplorável de alguns amigos nossos que, indiscriminadamente, recomendam sua leitura. É mesmo? Talvez estejam a formar legiões de idiotas, analfabetos funcionais estritos: aquele que lê, não compreende, mas acredita ter apreendido.


O leitor ingênuo da Bíblia a lê como um livro conexo e ao longo de uma seqüência temporal (um enredo): doce ilusão. A própria exigência de enredo é ocidental, o que não subsiste a uma análise elementar dos textos sagrados. Os dois primeiros capítulos do Gênesis, por exemplo, são de épocas que datam de mais de 2 séculos distância. São dois autores diferentes (‘S’ e ‘J’), posicionados em tradições diferentes de um mesmo povo para com a mesma religião. Daí o ateu ignorante falar de “contradição”, quando não está em posição de julgá-la se não dispõe da causa histórica referida. E mesmo assim, ainda se quer colocar a lê-la sem o estudo sério e sistemático de suas origens? Eis um exemplo colhido ao acaso, já de início da leitura. O fato mesmo de que cada livro bíblico não fora escrito por um mesmo autor, os quais constam de diferentes épocas às quais os costumes e tradições sofriam alterações e que, ademais, para todo o fundamento historiográfico há um fator de interpretação textual (análise do hebraico nessas diferentes fases, mediante comparações de outros textos e os problemas específicos de cada um), já deveria ser suficiente para extirpar de uma vez por todas que a Bíblia não é um livro comum, como se pensa. Sua forma atual é uma compilação que exige anos de estudo sério do estudante de história (jornalismo é uma área abrangente). A Bíblia em geral dos cristãos, por exemplo, deve ser lida à luz dos comentários exegéticos através da comparação com os textos latinos (de São Jerônimo), e gregos, vide dos famosos erros da Vulgata latina. Esta deveria ser a leitura básica do livro mais importante da civilização judaico-cristã ocidental. Talvez por ser o livro mais comum e antigo, fora banalizado. Se o é, banaliza-se a inteligência, e por isso o índice de tagarelice ateísta só tende a aumentar.


Em suma, eu diria que a Bíblia não é um livro de história: contém história. Mais que isso: possui uma história. Aquele que a desconhece não está em condição de estudá-la, tampouco de recomendar seu estudo. Espero ter conseguido alargar um pouco a visão complexa dos horizontes que estão por trás desse livro de mais de 2.000 anos de existência. Sua leitura requer muitos decênios de meditação intelectual, análise e revisão de periódicos. E isso porque não citei algumas pesquisas arqueológicas, que entrariam em conflito com muitos dos consensos da historiografia bíblica. Não sou especialista: iniciei-me no estudo histórico há alguns anos e continuo a abarcar tais áreas. O jornalista é o historiador do presente, e não se apreende o presente sem o passado. “Sobre algo do qual nada se sabe, deve-se calar. E aquele que crê saber, deve-se inquirir se realmente sabe: isso é conhecimento.” (Confúcio).

5 comentários:

Hotel Crônica disse...

Claro que ampliou a nossa visão sobre a bíblia...
belo texto.

Uma vez vi uma entrevista do Saramago e o perguntaram qual livro ele recomendaria como uma leitura obrigatória.
Ele respondeu a bíblia.
Creio que ele conheça bastante, todavia, para aconselhar tal leitura.
Grande abraço !

Fernando Silva disse...

Os crentes que nos dizem para estudar a Bíblia parecem acreditar em que ela terá um efeito mágico sobre quem a ler, independente do entendimento.

É estranho que fiéis e mesmo pastores se julguem capazes de questionar e descartar as conclusões de cientistas e físicos com décadas de estudo e experiência apenas porque seu livro "sagrado" diz outra coisa.

É também estranho que o suposto deus da Bíblia tenha nos enviado mensagens tão importantes através de um livro que requer o aprendizado de línguas mortas e o conhecimento da cultura de civilizações que existiram há 5 mil anos.

Tudo isto para, no fim, não conseguirmos chegar a uma conclusão definitiva sobre trechos obscuros, que contradizem a arqueologia, ou resolver as contradições.

Mas nada disto parece perturbar crentes semi-analfabetos, que leem o livro com dificuldade, quase soletrando, e desconhecem grande partes das palavras ali contidas.

A impressão que se tem é que, quanto mais obscuro e incompreensível é um livro, mais respeitável ele é.

Unknown disse...
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RaulBad disse...

Interessante. Nós precisamos então, conhecer o contexto histórico no qual cada parte da Bíblia foi escrita, analisando não só o texto, como o seu significado perante a sua localização e o seu tempo.

Olga PGov disse...

Aurélio, muitíssimo oportuna essa abordagem, escrita, no meu entender, para todos: crentes e ateus. E muito bem escrita, por sinal.
Por que é apropriada? porque é do estudo e do conhecimento aqui sugeridos que se pode debater com segurança e maior lucidez esse polêmico livro - a Bíblia.
Parabéns e, se me permite, copiei para mim!
abs
Olga