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terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Bertrand Russell -Os Problemas da Filosofia



Aparência e realidade



Existe no mundo algum conhecimento tão certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar? Esta questão, que à primeira vista poderia não parecer difícil, é, na realidade, uma das mais difíceis que podemos fazer. Quando tivermos compreendido os obstáculos na direção de uma resposta clara e segura, estaremos bem encaminhados no estudo da filosofia - pois a filosofia é simplesmente a tentativa de responder a estas questões fundamentais, não de uma forma descuidada e dogmática, como fazemos na vida cotidiana e mesmo nas ciências, mas de uma maneira crítica, após examinar tudo o que torna estas questões intrincadas, e após compreender tudo o que há de vago e confuso no fundo de nossas idéias habituais.

Na vida cotidiana admitimos como certas muitas coisas que, depois de um exame mais minucioso, nos parecem tão cheias de contradições que só um grande esforço de pensamento nos permite saber em que realmente acreditar. Na busca da certeza é natural começar pelas nossas experiências presentes e, num certo sentido, não há dúvida de que o conhecimento deriva delas. É possível, no entanto, que qualquer afirmação acerca do que nossas experiências imediatas nos permitem conhecer esteja errada. Parece-me que estou agora sentado numa cadeira, diante de uma mesa de determinada forma, sobre a qual vejo folhas de papel manuscritas ou impressas. Se virar a cabeça observarei, pela janela, edifícios, nuvens e o Sol. Creio que o Sol está a uns cento e cinqüenta milhões de quilômetros da Terra; que é um globo incandescente, muitas vezes maior que a Terra; que, devido à rotação terrestre, nasce todas as manhãs, e continuará fazendo o mesmo no futuro, durante um tempo indeterminado. Creio que, se qualquer outra pessoa normal entrar em meus aposentos verá as mesmas cadeiras, mesas, livros e papéis que eu vejo, e que a mesa que vejo é a mesma mesa que sinto pressionada contra meu braço. Tudo isso parece tão evidente que nem vale a pena ser mencionado, a não ser em resposta a quem duvide de que conheço alguma coisa. Não obstante, tudo isto pode ser posto em dúvida de um modo razoável, e requer em sua totalidade uma discussão muito cuidadosa antes que possamos estar seguros de que o expressamos de uma forma que é completamente verdadeira.

Para tornar evidentes estas dificuldades, concentremos a atenção na mesa. Para a vista a mesa é retangular, escura e brilhante, enquanto que para o tato ela é lisa, fria e dura; quando a percuto, produz um som de madeira. Qualquer pessoa que a veja, sinta e ouça o seu som, estará de acordo com esta descrição, de tal modo que parece que não existe aqui dificuldade alguma; porém, a partir do momento em que tentarmos ser mais precisos, começarão os nossos problemas. Embora eu acredite que a mesa é “realmente” da mesma cor em toda sua extensão, as partes que refletem a luz parecem muito mais brilhantes que as outras partes, e algumas partes, devido ao reflexo, parecem brancas. Sei que, se me deslocar, as partes que refletirão a luz não serão as mesmas, de modo que a distribuição aparente das cores na superfície da mesa mudará. Por conseguinte, se várias pessoas contemplarem a mesa no mesmo momento, nenhuma delas verá exatamente a mesma distribuição de cores, porque nenhuma delas pode vê-la exatamente do mesmo ponto de vista, e qualquer mudança de ponto de vista produz uma mudança na forma como a luz é refletida.

Para a maioria de nossos objetivos práticos estas diferenças não têm importância alguma, mas para o pintor são muito importantes. O pintor tem de perder o hábito de pensar que as coisas parecem ter a cor que o senso comum afirma que “realmente” têm, e habituar-se, ao invés disso, a ver as coisas tal como aparecem. Eis aqui a origem de uma das distinções que mais causam dificuldades na filosofia: a distinção entre “aparência” e “realidade”, entre o que as coisas parecem ser e o que elas são. O pintor deseja saber o que as coisas parecem ser, enquanto o homem prático e o filósofo desejam saber o que são. Contudo, o filósofo deseja este conhecimento com muito mais intensidade do que o homem prático, e sente-se muito mais perturbado pelo conhecimento das dificuldades que existem para responder a este problema.

Voltemos ao exemplo da mesa. O que vimos torna evidente que não há nenhuma cor que de modo distinto pareça ser a cor da mesa, ou mesmo de uma determinada parte da mesa. De pontos de vistas diferentes, a mesa parece ser de cores diferentes, e não há razão alguma para que consideremos uma delas como realmente sua cor, mais do que as outras. E sabemos que mesmo de um determinado ponto de vista a cor parecerá diferente sob a luz artificial, ou para um cego para a cor, ou para alguém que use óculos com lentes azuis –, enquanto que no escuro não haverá absolutamente cor alguma, ainda que para o tato e para o ouvido a mesa permaneça inalterável. Portanto, a cor não é algo inerente à mesa, mas algo que depende da mesa, do observador e da forma como a luz incide sobre a mesa. Na vida cotidiana, quando falamos da cor da mesa nos referimos apenas à cor que parece ter para um observador normal, de um ponto de vista habitual e em condições normais de luz. Mas as outras cores que aparecem sob outras condições têm exatamente o mesmo direito de serem consideradas como reais, e, portanto, para evitar qualquer favoritismo, somos obrigados a negar que, em si mesma, a mesa tenha qualquer cor particular.

A mesma coisa se pode dizer da textura da mesa. Podemos ver a olho nu as veias da madeira, mas ao mesmo tempo a mesa parece lisa e uniforme. Se a observássemos por intermédio de um microscópio veríamos saliências, relevos e depressões, e todo tipo de irregularidades que são imperceptíveis a olho nu. Qual é a mesa “real”? Temos, naturalmente, a tentação de dizer que a que vemos através do microscópio é mais real. Mas esta impressão mudaria, por sua vez, se utilizássemos um microscópio mais poderoso. Portanto, se não podemos confiar no que vemos a olho nu, por que deveríamos confiar no que vemos por intermédio de um microscópio? Assim, mais uma vez, a confiança inicial que tínhamos nos sentidos nos abandona.

Não é diferente em relação à forma da mesa. Temos todos o costume de fazer juízos sobre as formas “reais” das coisas, e fazemos isso de um modo tão irrefletido que chegamos a imaginar que vemos efetivamente as formas reais. Mas, de fato, como teremos necessidade de apreender se a quisermos desenhar, uma mesma coisa apresenta aspectos diferentes segundo o ponto de vista desde o qual a olhamos. Se a nossa mesa é “realmente” retangular, parecerá ter, de quase todos os pontos de vista, dois ângulos agudos e dois obtusos. Se os lados opostos são paralelos, irão parecer convergir num ponto afastado do observador; se são iguais, o lado mais próximo irá parecer maior. Geralmente não observamos estas coisas quando olhamos para uma mesa, porque a experiência nos ensinou a construir a forma “real” a partir da forma aparente, e, como homens práticos, é a forma “real” o que nos interessa. Mas a forma “real”, não é o que vemos; é algo que inferimos do que vemos. E o que vemos muda constantemente de forma na medida em que nos movemos na sala; de modo que aqui, mais uma vez, parece que os sentidos não nos apresentam a verdade sobre a própria mesa, mas apenas sobre a aparência da mesa.

Se considerarmos o sentido do tato nos depararemos com dificuldades semelhantes. É certo que a mesa produz sempre em nós uma sensação de dureza e que sentimos que resiste à pressão. No entanto, a sensação que obtemos depende da força com que pressionamos a mesa e também da parte do corpo com que a pressionamos; assim, não é possível supor que as diferentes sensações que resultam das diferentes pressões ou das diferentes partes do corpo, revelem diretamente uma propriedade específica da mesa, mas que, na melhor das hipóteses, são sinais de alguma propriedade que talvez cause todas as sensações, embora não apareça, efetivamente, em nenhuma delas. O mesmo se pode dizer de forma ainda mais evidente dos sons que obtemos batendo na mesa.

Assim, torna-se evidente que a mesa real, se é que existe, não é idêntica àquela que de maneira imediata temos experiência por meio da visão, do tato ou da audição. A mesa real, se é que realmente existe, não pode ser conhecida de maneira imediata, mas deve ser inferida a partir do que é imediatamente conhecido. Isso dá origem, simultaneamente, a duas questões difíceis; a saber: (1) Existe de fato uma mesa real? (2) Em caso afirmativo, que espécie de objeto pode ser?

Para examinar estas questões será útil dispor de alguns termos simples cujo significado seja preciso e claro. Chamaremos de dados dos sentidos às coisas que são imediatamente conhecidas na sensação, tais como: cores, sons, cheiros, a dureza, a aspereza, etc. Daremos o nome de sensação para a experiência de ter imediatamente consciência destas coisas. Assim, quando vemos determinada cor, temos a sensação da cor, mas a própria cor é um dado dos sentidos, não uma sensação. A cor é aquilo de que somos imediatamente conscientes, e a própria consciência mesma é a sensação. É evidente que se conhecemos algo acerca da mesa, é preciso que seja por meio dos dados dos sentidos – a cor escura, a forma retangular, a lisura, etc. – que associamos com a mesa; mas não podemos dizer, pelas razões já expostas, que a mesa é o dado do sentido, ou então que os dados dos sentidos são propriedades diretas da mesa. Assim, supondo que exista tal mesa, surge o problema da relação dos dados dos sentidos com a mesa real.

Denominaremos a mesa real, se é que existe, de um “objeto físico”. Por conseguinte, temos de considerar a relação entre os dados dos sentidos e os objetos físicos. A coleção de todos os objetos físicos é denominada de “matéria”. Assim, as nossas duas questões podem ser recolocadas da seguinte forma: 1) Existe tal coisa como a matéria? 2) Em caso afirmativo, qual é sua natureza?

O primeiro filósofo que expôs claramente as razões para considerar os objetos imediatos dos nossos sentidos como não existindo independentemente de nós foi o bispo Berkeley (1685-1753). Seus Três diálogos entre Hilas e Filonous, contra os céticos e ateus, procura provar que não existe tal coisa como a matéria, e que o mundo consiste apenas de mentes e suas idéias. Hilas acreditara até o momento na matéria, mas não pode competir com Filonous, que o leva implacavelmente a contradições e paradoxos e faz a negação da matéria parecer, no final, algo de senso comum. Os argumentos que emprega são de valor muito desigual: alguns são importantes e corretos; outros confusos e sofísticos. Mas Berkeley tem o mérito de ter mostrado que a existência da matéria é suscetível de ser negada sem absurdo, e que se há algumas coisas que existem independentemente de nós, não podem ser os objetos imediatos de nossas sensações.

Há duas diferentes questões implícitas quando perguntamos se a matéria existe, e é importante explicitá-las. Por “matéria” geralmente entendemos algo que se opõe a “mente”, algo que pensamos que ocupa espaço e que é completamente incapaz de qualquer pensamento ou consciência. É principalmente neste sentido que Berkeley nega a matéria; ou seja, ele não nega que os dados dos sentidos, que comumente tomamos como sinais da existência da mesa, sejam realmente sinais da existência de algo independente de nós, mas nega que este algo seja não mental, isto é, que não seja a mente ou as idéias concebidas por uma mente. Ele admite que algo deve continuar existindo quando saímos do aposento ou fechamos os olhos, e que aquilo que chamamos de ver a mesa nos dá realmente uma razão para acreditarmos que algo persiste mesmo quando não o vemos. No entanto, ele pensa que este algo não pode ter uma natureza radicalmente diferente daquilo que vemos, e que não pode ser completamente independente da visão, embora deva ser independente de nossa visão. Berkeley é, assim, levado a considerar a mesa “real” como uma idéia na mente de Deus. Esta idéia tem a necessária permanência e independência em relação a nós mesmos, sem ser – como de outro modo a matéria seria – algo completamente incognoscível, no sentido de que poderia ser apenas inferida, nunca conhecida de um modo direto e imediato.

Outros filósofos, a partir de Berkeley, sustentaram que, embora a existência da mesa não dependa do fato de ser vista por mim, depende de ser vista (ou apreendida de uma maneira ou outra na sensação) por uma mente – não necessariamente a mente de Deus, mas com mais freqüência a mente coletiva do universo. Como Berkeley, sustentam isso principalmente porque acreditam que não pode existir nada real – ou, pelo menos, nada que possamos saber que seja real – a não ser as mentes, seus pensamentos e sentimentos. Podemos expor o argumento com que sustentam sua opinião desta forma: “Tudo o que pode ser pensado é uma idéia na mente da pessoa que pensa; portanto, só as idéias nas mentes podem ser pensadas; qualquer outra coisa é inconcebível, e o que é inconcebível não pode existir”.

Em minha opinião este argumento é falacioso; e, naturalmente, os que o empregam não o expõem de uma forma tão concisa e grosseira. Mas, válido ou não, o argumento tem sido amplamente empregado de uma forma ou de outra, e muitos filósofos, talvez a maioria, sustentaram que nada existe de real a não ser as mentes e suas idéias. Estes filósofos são denominados de “idealistas”. Quando procuram explicar a matéria dizem, como Berkeley, que ela não é de fato outra coisa a não ser uma coleção de idéias, ou como Leibniz (1646-1716), que o que aparece como matéria é, na realidade, uma coleção de mentes mais ou menos rudimentares.

Mas embora estes filósofos neguem a matéria como algo que se opõe à mente, eles a admitem, contudo, em outro sentido. Recordemos as duas questões que apresentamos, a saber: (1) Existe, de fato, uma mesa real? (2) Em caso afirmativo, que classe de objeto pode ser? Ora, tanto Berkeley como Leibniz admitem que existe uma mesa real, mas Berkeley diz que ela consiste em certas idéias na mente de Deus, e Leibniz afirma que é uma colônia de almas. Assim, ambos respondem de modo afirmativo a primeira questão e divergem da visão das pessoas comuns apenas na resposta à segunda questão. Na verdade, quase todos os filósofos parecem concordar que existe uma mesa real; quase todos admitem que, ainda que os dados dos sentidos – a cor, a forma, a lisura, etc. – dependam de algum modo de nós, a sua ocorrência, todavia, é um sinal de algo que existe independentemente de nós, algo que talvez difira completamente dos nossos dados dos sentidos e que, não obstante, deve ser considerado como a causa desses dados dos sentidos sempre que estamos numa relação adequada com a mesa real.

É evidente que este ponto, sobre o qual os filósofos estão de acordo – a opinião de que existe uma mesa real, qualquer que seja sua natureza – é de importância vital, e vale a pena examinar as razões desta aceitação, antes de abordarmos o problema da natureza da mesa real. Por este motivo, o próximo capítulo tratará das razões para supormos que existe, de fato, uma mesa real.

Antes de prosseguirmos será bom que examinemos o que é que descobrimos até agora. Vimos que, se tomarmos um objeto comum qualquer, desses que supomos conhecer por meio dos sentidos, aquilo que os sentidos imediatamente nos mostram não é a verdade acerca do objeto, tal como ele é independentemente de nós, mas somente a verdade sobre certos dados dos sentidos que, tanto quanto podemos ver, dependem da relação entre nós e o objeto. Consequentemente, o que vemos e tocamos de maneira direta não passa de mera “aparência”, sinal, supomos nós, de uma “realidade” que está por trás dela. Mas se a realidade não é o que aparece, temos algum meio de saber se de fato existe uma realidade? E, em caso afirmativo, temos algum meio de descobrir em que consiste?

Estas questões são desconcertantes, e torna-se difícil saber se mesmo as mais estranhas hipóteses não são verdadeiras. Assim, a nossa mesa cotidiana, que geralmente só havia despertado em nós idéias insignificantes, tornou-se agora um problema com muitas e surpreendentes possibilidades. A única coisa que sabemos a seu respeito é que não é o que parece. Até aqui, além deste modesto resultado, temos a mais completa liberdade para conjecturar. Leibniz afirma que ela é uma colônia de almas; Berkeley afirma que ela é uma idéia na mente de Deus; a ciência desapaixonada, não menos maravilhosa, afirma que é uma coleção de cargas elétricas em intenso movimento.

Em meio a estas surpreendentes possibilidades, a dúvida sugere que talvez não exista em absoluto mesa alguma. A filosofia, se não pode responder a todas as perguntas como desejaríamos que respondesse, tem pelo menos o poder de propor questões que tornam o mundo muito mais interessante e revelam o que há de estranho e maravilhoso por trás até mesmo das coisas mais vulgares da vida cotidiana.

Livro na íntegra:
http://www.cfh.ufsc.br/~conte/russell.html

Um comentário:

San Ramon disse...

A leitura do verbete Corpo, do Dicionário Filosófico de Voltaire, aborda a questão com uma objetividade estanque.

"Consequentemente, o que vemos e tocamos de maneira direta não passa de mera “aparência”, sinal, supomos nós, de uma “realidade” que está por trás dela. Mas SE a realidade não é o que aparece, temos algum meio de saber se de fato existe uma realidade? E, em caso afirmativo, temos algum meio de descobrir em que consiste?

Efetivamente, essa divisão que você faz é prepositiva. Por tudo que foi comentado aqui, eu concluo assim: A realidade é a conformação consciente, a "aparência", das informações condicionadas pelos meus sentidos.