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terça-feira, 9 de julho de 2013

Jornalista padrão FBI



As redes sociais mudaram os conceitos de notícia, da verticalidade da informação e estraçalharam com paradigmas do que se compreendia desde os anos 1960 como modelo do jornalismo moderno. Uma implosão magistral de conceitos, estruturas e normas que regeram por décadas tanto criador como a criatura. Algo que pouquíssimos pensadores da sociedade cibernética, como o francês Pierre Levi, e alguns jornalistas mais atrevidos poderiam conceber em seus estudos, artigos e livros. Mas até aí nenhuma novidade – e já comentado demais.

Entretanto, apenas parte dos seres gerados nesse processo de mutação mostraram seus dorsos e, pouquíssimos, suas caras ao emergirem no meio desses escombros. Mas a seleção natural nunca foi um processo com a velocidade de megabites pelas infovias – é lenta, orgânica e física, e dela surgem também deformidades e abominações, que podem prosperar ou não, conforme a adequação ao ambiente. Darwinismo puro.

Pelo visto, sentido e relatado, os jornalistas estão entre as primeiras espécies ingressas na listagem “ameaçadas de extinção”. O conceito de evolução também se aplica a essa categoria profissional, um tanto letárgica em seus movimentos, pois carregava sob o dorso o peso de estruturas gigantescas e um tanto servis ao sistema. E nesse trote trôpego tornaram-se com o tempo apenas repetidoras de preceitos da modelagem centenária da profissão. Um Quasímodo a se dependurar nas gárgulas e ameias da catedral a observar distante a populaça.

O que era imprevisto, porém, foi a guinada do voyeurismo do Facebook, que se encontrava mais para o clássico filme Janela Indiscreta de Alfred Hitchcock, para um modelo da perversidade fascista como do Federal Bureau of Investigation (FBI) de John Edgar Hoover. Ou vir a se assemelhar às práticas da nacional-socialista alemã Geheime Staatspolizei, a Gestapo, conhecida por suas atividades invasivas.

Rede de alcaguetes

Mas o tema aqui não são as espionagens da central de inteligência do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e sim da versão tropicalizada deste procedimento. Por essas plagas que já experimentou o Serviço Nacional de Informações (SNI) e o colaboracionismo da Polícia Civil, novos elementos se agregaram voluntariosamente à formação de dossiês, investigações contra pessoas e entidades, criação de redes de alcaguetes entre outras atuações que deixariam o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) satisfeitíssimo com a disseminação e avanço de suas técnicas.

Nem mesmo a cultura da espionagem e delação profetizada pelo jornalista e escritor britânico George Orwell, em seu romance político 1984, poderia prever que os atores desse cenário medieval, de um Estado policialesco e opressor, seriam jornalistas. Sem diploma e regulamentação, a profissão se tornou um Quasímodo torturado por suas deformidades que tenta se adaptar para sobreviver. Diferente do esforço contra o Estado policial instalado no Brasil durante a ditadura militar, agora os jornalistas se tornaram os novos controladores das manifestações públicas. Esses recém promovidos a cães de guarda do sistema estão cumprindo à risca suas novas funções.

Com o falência das redações mantidas pela grande imprensa, o Estado em suas diversas esferas passou a arrebanhar esse imenso contingente, tanto egresso dos jornais como oriundos das faculdades que proliferaram como ratos nas últimas décadas, a maioria de péssima qualidade. Nunca foi novidade que muitos jornalistas estampavam suas paixões e ideologias abertamente, algo comum em um ambiente que sem contestação e efervescência de opiniões e ideários estaria fadado a ser mero reprodutor do oficialismo, da visão unilateral e, por vezes, distorcida.

Indicativos

No entanto, já em meados dos anos 1990 haviam claros indicativos que essa situação se transformava. As novas gerações aportavam enfaradas por seu comodismo intelectual, realizados com a falsa sensação de poder emprestada pelo exercício da profissão, com atuações cada vez mais oficial e burocrática, temerosas de infringir o “politicamente correto” e envoltas no manto da arrogância extremada e agressivas na defesa de seu status e vaidades aguçadas por aduladores. A situação se agravou de maneira frenética com o passar dos anos.

A mutação ignora os reclames. Moribundo e encastelado em seus antigos conceitos e práticas, a velha guarda do jornalismo ainda rememorava seus tempos de diversidade e clamava por profissionais que rumaram para longe desse horizonte nebuloso. Fugiam dos péssimos salários, de jornadas de trabalho mais apropriadas aos regimes escravocratas e de empresas nas quais a gestão é feita muito mais pelo interesse pessoal, pelo desleixo com a qualidade do conteúdo e pelo apadrinhamento que pela competência. Enfim, uma nova ordem estava estabelecida.

Boa parte da demanda para novos jornalistas passou a vir das assessorias de imprensa dos governos, de suas empresas e entidades públicas. O “quarto poder” não está mais divorciado de seus pares. E aí reside a pestilência. A tendência agora é transferir para os jornalistas a incumbência do engajamento da militância e de posicionamentos que fogem de sua função. Embora seja impossível saber ao certo qual a extensão desta rede de intrigas e fuxicos, seus efeitos são sentidos diariamente.

Imprensa golpista

Existem diversos relatos e demonstrações nas redes sociais, em particular no Facebook, de que as assessorias se tornaram centros de formação de bisbilhoteiros e alcaguetes profissionais. Cada grupo político partidário, altamente profissionalizado, adota em sua “política de comunicação” orientações para o atendimento à imprensa conforme uma classificação de cooptação, na qual há a separação da “imprensa parceria” e “imprensa inimiga” ou PIG (Partido da Imprensa Golpista). Algo de uma tacanhez sem precedentes.

Nessa visão maniqueísta e de viés totalitário, o trabalho de divulgação da informação institucional de interesse jornalístico é secundário. O foco é outro e dotado de contornos altamente perigosos para a própria liberdade de imprensa. Esses verdadeiros locatários do poder, que sitiaram o Estado da sociedade, criaram um sistema para vigiar, atacar e segregar os que ainda tentam desenvolver um jornalismo com maior independência ou na defesa de um ponto de vista editorial ou pessoal. Uma versão renovada da propaganda do Estado Novo, a própria releitura em matriz digital das práticas censórias getulistas.

Nesse enxame de moscas varejeiras, os veículos de comunicação, seus repórteres e editores são vasculhados pela rede. O objetivo é caçar informações pessoais, manifestações públicas sobre assuntos corriqueiros, entre eles a política. Suas páginas, fotos, blogs, sites são visitados periodicamente e as opiniões são recolhidas em dossiês. Esses documentos são formados destacando o jornalista como gerador de notícias “contra” ou “a favor do governo”, seja na esfera municipal, estadual, federal e, por fim, partidária.

Pudor, nenhum

A ferramenta promotora para essa prática está à disposição e poupa esforços: as redes sociais. E os agentes, os melhores possíveis, jornalistas engajados e ligados a estruturas da política profissional – que inclusive contam com agências de publicidade, marqueteiros, jornais e revistas, produtores de vídeos, redações completas para produzir informações e contrainformações.

Esses jornalistas não defendem uma causa, defendem sua nova posição social e seus empregos muito bem remunerados, financiados com o dinheiro público. Pudor, nenhum. Prova disto é que criam fakes com nomes de profissionais do círculo de relações do colega a ser seguido, interagem com a vítima com a desenvoltura dos grandes hipócritas.

A partir desses levantamentos canhestros, são produzidos relatórios e a separação do volume de matérias feitas contra o status quo. Esses dossiês circulam entre chefias, inclusive no setor privado e em redações de jornais, embora isso seja negado com veemência pelos travestidos de defensores da liberdade de imprensa. A tal da lista negra, uma prática antiga que atualmente é chamada de PIG, é produzida com requintes de perversidade que faria corar de vergonha qualquer agente do Departamento de Ordem Política e Social (Dops).

O objetivo é anular o alvo, tanto na parte profissional como pessoal. Mostrar a força do Estado policial, punitivo e converter o indivíduo numa sombra do que era e excluir sua existência diante do olhar de aprovação do Grande Irmão. Mas longe do conhecimento da sociedade. Orwell nunca foi de tamanha realidade no Brasil. A tecnologia que era para ampliar as diversidades se tornou a face do totalitarismo e de seus novos agentes, os jornalistas padrão FBI.

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Júlio Ottoboni é jornalista, pós-graduado em jornalismo científico

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